quinta-feira, 17 de junho de 2010

O atestado médico por José Ricardo Costa

Imagine o meu caro que é professor, que é dia de exame do 12º ano e vai ter de fazer
uma vigilância. Continue a imaginar. O despertador avariou durante a noite. Ou fica
preso no elevador. Ou o seu filho, já à porta do infantário, vomitou o quente,
pastoso, húmido e fétido pequeno-almoço em cima da sua imaculada camisa.
Teve, portanto, de faltar à vigilância. Tem falta. Ora esta coisa de um professor ficar
com faltas injustificadas é complicada, por isso convém justificá-la. A questão agora é:
como justificá-la?
Passemos então à parte divertida. A única justificação para o facto de ficar preso no
elevador, do despertador avariar ou de não poder ir para uma sala do exame com a
camisa vomitada, ababalhada e malcheirosa, é um atestado médico. Qualquer pessoa
com um pouco de bom senso percebe que quem precisa aqui do atestado médico
será o despertador ou o elevador. Mas não. Só uma doença poderá justificar sua
ausência na sala do exame. Vai ao médico. E, a partir deste momento, a situação
deixa de ser divertida para passar a ser hilariante.
Chega-se ao médico com o ar mais saudável deste mundo. Enfim, com o sorriso de
Jorge Gabriel misturado com o ar rosado do Gabriel Alves e a felicidade do padre
Melícias. A partir deste momento mágico, gera-se um fenómeno que só pode ser
explicado através de noções básicas da psicopatologia da vida quotidiana. Os mesmos
que explicam uma hipnose colectiva em Felgueiras, o holocausto nazi ou o sucesso da
TVI.
O professor sabe que não está doente. O médico sabe que ele não está doente. O
presidente do executivo sabe que ele não está doente. O director regional sabe que
ele não está doente. O Ministério da Educação sabe que ele não está doente.
O próprio legislador, que manda a um professor que fica preso no elevador
apresentar um atestado médico, também sabe que o professor não está doente.
Ora, num país em que isto acontece, para além do despertador que não toca, do
elevador parado e da camisa vomitada, é o próprio país que está doente.
Um país assim, onde a mentira é legislada, só pode mesmo ser um país doente.
Vamos lá ver, a mentira em si não é patológica. Até pode ser racional, útil e eficaz em
certas ocasiões. O que já será patológico é o desejo que temos de sermos enganados
ou a capacidade para fingirmos que a mentira é verdade
.